VELHO ANO NOVO
VELHO ANO NOVO
Com antecedência reservamos e garantimos vagas para toda a família. Fomos impelidos pelos comerciais e noticiário da TV e, óbvio, pela curiosidade. Os apelos da mídia garantiam, no réveillon nas Missões, programação especial na virada do ano.
Envergando o vestuário recomendado pela superstição, deixamo-nos ficar à beira da piscina do hotel e encaramos os estertores do ano velho. Concluída a contagem regressiva, comandada por algum ator global no telão ali instalado, passamos ao cerimonial de troca de abraços e beijos, entremeados aos desejos de bom 2013 e ao som de “muito dinheiro no bolso, saúde pra dar e vender”. Adiante, sobre os escombros da catedral de São Miguel, os sinais luminosos de rojões e fogos de artifício enchem os olhos.
Concluída a pirotecnia, com certa pompa e expectativa é anunciada a apresentação de um coral guarani – a atração do novo ano, que coincide com os objetivos da promoção: além do turismo, a história e a religiosidade do povo de antanho.
Assomam então uns vinte guaranis, dos quais a metade são crianças. Descalços, a maioria; os meninos, só de calças feitas com algodão cru, desse utilizado para confecção de sacos. Três são os instrumentos musicais: um violão, um chocalho de porongo e um tambor rústico.
A opera-prima se limita a três canções em guarani, incompreensíveis, simplórias, com pouca variação de ritmo. A humilde performance reproduz o que restou da cultura deles, nessas plagas, quase dizimada pelos europeus vorazes, nossos ancestrais. Tocante mesmo é o ar de insolúvel melancolia ou de timidez extremada das fisionomias e os olhares constrangidos dos pretensos artistas.
Apesar do sofrível empenho, irrompem palmas ao final de cada canto. São aplausos para os pósteros sobreviventes do holocausto guarani, daqueles compelidos a abrir mão de tudo, da mata, dos animais, dos costumes, da liberdade. Daqueles que se veem na contingência de andar e acampar pelas estradas na terra que lhes pertencia. Claro, as crianças ali nada sabem e os adultos parecem não nutrir qualquer ódio aos brancos.
O entusiasmo dos assistentes, após cada exibição, intensifica-se, torna-se banal, e só encontra justificativa na alegria esfuziante provocada pelas taças de espumantes distribuídos aos hóspedes, consumidas sem pudor diante dos indígenas ali postados.
Exaurida a apresentação, as crianças e os jovens se afastam; carregam consigo aquele ar triste, mas também certo alívio. Permanecem dois ou três adultos para vender singelas peças de artesanato. Os trocados que arrecadam simbolizam em definitivo a dominação dos civilizados. Depois, ao vê-los sair, imagino se apoderar de mim igual sensação que devem sentir os guaranis cantores: o novo ano inicia velho.
Adair Philippsen